Por José Ribamar Bessa Freire
(Professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ)
e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
Há pouco, Caetano Veloso descartou do seu horizonte
eleitoral o presidente Lula da Silva, justificando: "Lula é
analfabeto". Por isso, o cantor baiano aderiu à candidatura da
senadora Marina da Silva , que tem diploma universitário. Agora, vem a
roqueira Rita Lee dizendo que nem assim vota em Marina para
presidente, "porque ela tem cara de quem está com fome".
Os Silva não têm saída: se correr o Caetano pega, se
ficar a Rita come.
Tais declarações são espantosas, porque foram feitas
não por pistoleiros truculentos, mas por dois artistas refinados,
sensíveis e contestadores, cujas músicas nos embalam e nos ajudam a
compreender a aventura da existência humana.
Num país dominado durante cinco séculos por bacharéis
cevados, roliços e enxudiosos, eles naturalizaram o canudo de papel e
a banha como requisitos indispensáveis ao exercício de governar, para
o qual os Silva, por serem iletrados e subnutridos, estariam
despreparados.
Caetano Veloso e Rita Lee foram levianos, deselegantes
e preconceituosos. Ofenderam o povo brasileiro, que abriga, afinal,
uma multidão de silvas famélicos e desescolarizados.
De um lado, reforçam a ideia burra e cartorial de que o
saber só existe se for sacramentado pela escola e que tal saber é
condição sine qua non para o exercício do poder. De outro, pecam
querendo nos fazer acreditar que quem está com fome carece de
qualidades para o exercício da representação política.
A rainha do rock, debochada, irreverente e crítica, a
quem todos admiramos, dessa vez pisou na bola. Feio."Venenosa! Êh êh
êh êh êh!/ Erva venenosa, êh êh êh êh êh!/ É pior do que cobra
cascavel/ O seu veneno é cruel.../ Deus do céu!/ Como ela é maldosa!".
Nenhum dos dois - nem Caetano, nem Rita - têm tutano
para entender esse Brasil profundo que os silvas representam.
A senadora Marina da Silva tem mesmo cara de quem está
com fome? Ou se trata de um preconceito da roqueira, que só vê
desnutrição ali onde nós vemos uma beleza frágil e sofrida de Frida
Kahlo, com seu cabelo amarrado em um coque, seus vestidos longos e seu
inevitável xale? Talvez Rita Lee tenha razão em ver fome na cara de
Marina, mas se trata de uma fome plural, cuja geografia precisa ser
delineada. Se for fome, é fome de quê?
O mapa da fome
A primeira fome de Marina é, efetivamente, fome de
comida, fome que roeu sua infância de menina seringueira, quando comeu
a macaxeira que o capiroto ralou. Traz em seu rosto as marcas da
pobreza, de uma fome crônica que nasceu com ela na colocação de Breu
Velho, dentro do Seringal Bagaço, no Acre.
Órfã da mãe ainda menina, acordava de madrugada, andava
quilômetros para cortar seringa, fazia roça, remava, carregava água,
pescava e até caçava. Três de seus irmãos não aguentaram e acabaram
aumentando o alto índice de mortalidade infantil.
Com seus 53 quilos atuais, a segunda fome de Marina é
dos alimentos que, mesmo agora, com salário de senadora, não pode
usufruir: carne vermelha, frutos do mar, lactose, condimentos e uma
longa lista de uma rigorosa dieta prescrita pelos médicos, em razão de
doenças contraídas quando cortava seringa no meio da floresta. Aos
seis anos, ela teve o sangue contaminado por mercúrio. Contraiu cinco
malárias, três hepatites e uma leishmaniose.
A fome de conhecimentos é a terceira fome de Marina.
Não havia escolas no seringal. Ela adquiriu os saberes da floresta
através da experiência e do mundo mágico da oralidade. Quando contraiu
hepatite, aos 16 anos, foi para a cidade em busca de tratamento médico
e aí mitigou o apetite por novos saberes nas aulas do Mobral e no
curso de Educação Integrada, onde aprendeu a ler e escrever.
Fez os supletivos de 1º e 2º graus e depois o
vestibular para o Curso de História da Universidade Federal do Acre,
trabalhando como empregada doméstica, lavando roupa, cozinhando,
faxinando.
Fome e sede de justiça: essa é sua quarta fome. Para
saciá-la, militou nas Comunidades Eclesiais de Base, na associação de
moradores de seu bairro, no movimento estudantil e sindical. Junto com
Chico Mendes, fundou a CUT no Acre e depois ajudou a construir o PT.
Exerceu dois mandatos de vereadora em Rio Branco ,
quando devolveu o dinheiro das mordomias legais, mas escandalosas,
forçando os demais vereadores a fazerem o mesmo. Elegeu-se deputada
estadual e depois senadora, também por dois mandatos, defendendo os
índios, os trabalhadores rurais e os povos da floresta.
Quem viveu da floresta, não quer que a floresta morra.
A cidadania ambiental faz parte da sua quinta fome. Ministra do Meio
Ambiente, ela criou o Serviço Florestal Brasileiro e o Fundo de
Desenvolvimento para gerir as florestas e estimular o manejo
florestal.
Combateu, através do Ibama, as atividades predatórias.
Reduziu, em três anos, o desmatamento da Amazônia de 57%, com a
apreensão de um milhão de metros cúbicos de madeira, prisão de mais
700 criminosos ambientais, desmonte de mais de 1,5 mil empresas
ilegais e inibição de 37 mil propriedades de grilagem.
Tudo vira bosta
Esse é o retrato das fomes de Marina da Silva que - na
voz de Rita Lee - a descredencia para o exercício da presidência da
República porque, no frigir dos ovos, "o ovo frito, o caviar e o
cozido/ a buchada e o cabrito/ o cinzento e o colorido/ a ditadura e o
oprimido/ o prometido e não cumprido/ e o programa do partido: tudo
vira bosta".
Lendo a declaração da roqueira, é o caso de
devolver-lhe a letra de outra música - 'Se Manca' - dizendo a ela:
"Nem sou Lacan/ pra te botar no divã/ e ouvir sua merda/ Se manca,
neném!/ Gente mala a gente trata com desdém/ Se manca, neném/ Não vem
se achando bacana/ você é babaca".
Rita Lee é babaca? Claro que não, mas certamente
cometeu uma babaquice. Numa de suas músicas - 'Você vem' - ela faz
autocrítica antecipada, confessando: "Não entendo de política/ Juro
que o Brasil não é mais chanchada/ Você vem... e faz piada". Como ela
é mutante, esperamos que faça um gesto grandioso, um pedido de
desculpas dirigido ao povo brasileiro, cantando: "Desculpe o auê/ Eu
não queria magoar você".
A mesma bala do preconceito disparada contra Marina
atingiu também a ministra Dilma Rousseff, em quem Rita Lee também não
vota porque, "ela tem cara de professora de matemática e mete medo".
Ah, Rita Lee conseguiu o milagre de tornar a ministra Dilma menos
antipática! Não usaria essa imagem, se tivesse aprendido elevar uma
fração a uma potência, em Manaus, com a professora Mercedes Ponce de
Leão, tão fofinha, ou com a nega Nathércia Menezes, tão altaneira.
Deixa ver se eu entendi direito: Marina não serve
porque tem cara de fome. Dilma, porque mete mais medo que um exército
de logaritmos, catetos, hipotenusas, senos e co-senos. Serra, todos
nós sabemos, tem cara de vampiro. Sobra quem?
Se for para votar em quem tem cara de quem comeu (e
gostou), vamos ressuscitar, então, Paulo Salim Maluf ou Collor de
Mello, que exalam saúde por todos os dentes. Ou o Sarney, untuoso, com
sua cara de ratazana bigoduda. Por que não chamar o José Roberto
Arruda, dono de um apetite voraz e de cuecões multi-bolsos? Como
diriam os franceses, "il péte de santé".
O banqueiro Daniel Dantas, bem escanhoado e já
desalgemado, tem cara de quem se alimenta bem. Essa é a elite bem
nutrida do Brasil...
Rita Lee não se enganou: Marina tem a cara de fome do
Brasil, mas isso não é motivo para deixar de votar nela, porque essa é
também a cara da resistência, da luta da inteligência contra a
brutalidade, do milagre da sobrevivência, o que lhe dá autoridade e a
credencia para o exercício de liderança em nosso país.
Marina Silva, a cara da fome? Esse é um argumento
convincente para votar nela. Se eu tinha alguma dúvida, Rita Lee me
convenceu definitivamente.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Abra a boca e mostra a língua!